Há exatos 100 anos morria o jornalista, crítico, tradutor e teatrólogo João do Rio, um dos primeiros homossexuais aclamados nacionalmente.
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Nascido João Paulo Emílio Cristovão dos Santos Coelho Barreto na Rua do Hospício (hoje Rua Buenos Aires), no centro do Rio de Janeiro, em 5 de agosto de 1881, ele se tornou um dos maiores cronistas da capital fluminense de todos os tempos.
Historiadores asseguram: é impossível falar do modo de vida do carioca do começo do século 20 sem perpassar pela obra de João do Rio.
Filho de um professor de matemática e de uma dona de casa, João estudou no tradicional Colégio São Bento, exclusivo para meninos, e considerado até hoje um dos melhores do País.
Aos 16 anos, passou a flertar com o jornalismo ao escrever crítica da peça Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen, em cartaz no Teatro Carlos Gomes, para o jornal A Tribuna.
Nos anos seguintes - entre 1900 e 1903 - João colaborou com diversas publicações, como O Dia, Correio Mercantil e O Coió.
Mas foi na Gazeta de Notícias, para onde foi em 1903, que ele fez seu nome - quase literalmente. Ali nasceu o pseudônimo João do Rio (até aquele momento, ele assinava sob diversas alcunhas).
Então capital do Brasil, o Rio passava entre 1902 e 1906 por grande transformação. O prefeito Francisco Pereira Passos coordenou 3 mil demolições e colocou abaixo cortiços, hospedarias e ruas inteiras para remodelar a cidade. Nascia ali, por exemplo, a Avenida Central - hoje, Avenida Rio Branco.
E ninguém melhor traduziu as mudanças pelas quais passava essa nova "Paris tropical" com inspiração na Belle Époque do que João do Rio.
Ele ia às ruas e, com sensibilidade e originalidade, falava sobre personagens que faziam parte do cotidiano da metrópole. Foi o primeiro jornalista a escrever a respeito de meninos de rua.
A partir de 1904, João do Rio começou uma série de reportagens ("As Religiões do Rio") no mesmo jornal, sobre diferentes crenças - cinco das matérias foram sobre as de matriz africana.
Seus textos fizeram tanto sucesso que fizeram dobrar a edição da Gazeta de Notícias na época. Ele lançou livro, no final daquele ano, reunindo as reportagens, o que se tornaria um dos primeiros best-sellers do País.
Pode-se dizer que ele foi um dos primeiros repórteres brasileiros, já que a função passou a ser entendida como profissão justamente nesta fase, quando os principais jornais do País se estruturaram e passaram a dividir e nomear cargos no que se entende como uma redação hoje em dia.
Com várias idas a Portugal, João lançou a Atlântida, revista que pretendia estreitar laços entre a nação europeia e o Brasil.
Ele foi o principal tradutor das obras de Oscar Wilde, o "poeta maldito", maior ícone gay da literatura mundial.
À frente de seu tempo, o jornalista escrevia sobre divórcio, voto feminino e regulamentação do trabalho décadas antes destes temas serem reconhecidos oficialmente.
Negro, gordo e gay
Em meio a tantas conquistas, João do Rio precisou lidar com uma grande decepção: a diplomacia.
Seu sonho foi destruído pelo Barão do Rio Branco, na época, o grande organizador do Itamaraty.
Ele ouviu do Barão que jamais teria chance de representar o País mundo afora. O motivo? Era "gordo, amulatado e homossexual", distante da imagem que se pressupunha que um diplomata deveria ter.
João nunca assumiu publicamente sua homossexualidade. Ele era alvo constante de insinuações na imprensa e dentre escritores, como de Humberto de Campos (1886-1934), seu desafeto público.
Em sua terceira tentativa, João foi aceito na Academia Brasileira de Letras (ABL) em 1910 e foi o primeiro "imortal" a tomar posse usando o famoso "fardão dos imortais", traje, que à época, era rechaçado pelos eleitos por parecer coisa de "afeminado".
Dez anos depois, com eleição de Campos, o jornalista se afastou da ABL e deixou expresso que seu velório não poderia ser realizado ali.
Com apenas 39 anos, João do Rio estava em um táxi, em 23 de junho de 1881, quando sentiu-se mal. Ele pediu que o motorista parasse o veículo e lhe trouxesse um copo de água. Antes que o socorro chegasse, o jornalista morreu, vítima de um enfarte fulminante.
Cerca de 100 mil pessoas compareceram ao enterro de João do Rio no Cemitério São João Batista, zona sul da cidade.
Seu nome deu título a uma rua do bairro de Botafogo e toda sua biblioteca e vários objetos pessoais foram doados, por sua mãe, ao Real Gabinete Português de Leitura, na região central.